27/01/2016 02h00
-Amor, corre aqui, "pelamor" de Deus- gritou amarrando lágrimas a mulher.
Quando se pede a um cidadão cadeirante que está desmanchado em um confortável sofá que corra é porque a situação é de calamidade pública. Quando esse pedido vem de sua mulher, que conhece suas lerdezas como ninguém, é porque começou uma hecatombe.
Ajeitei-me na velocidade mais rápida possível e cheguei tenso e esbaforido à porta do quarto. Sabia que aquele chamamento não era para ver borboletas azuis.
-Elis deu uns tremeliques! A febre já tá passando dos 38ºC. O que vamos fazer?
Nessa estonteante aventura de criar menino, nada enverga tanto as seguranças e convicções do que ver seu bebezinho nos flagelos implacáveis de bactérias, vírus, dores e dissabores.
Por natureza, reluto ante o limite do desespero materno e a minha parca experiência de entender organismos efervescentes de bebês, antes de me entregar ao calafriento caminho do pronto-socorro infantil, terra onde o coração da gente passa pela dura provação de ver macas enfeitadas com os mesmos bichinhos dos momentos felizes.
E, quando se ajeitam as emoções com o mantra "vai passar logo, meu bem", entre uma golfada e outra, com um amarelão que toma conta daquele rostinho corado, o bebê, na franca carência que lhe abate diante do mal-estar, estende os braços a você e manda ver num afago como se pedisse: "Arranque logo isso de mim, papai?".
Nenhum político mentiroso, extremista de redes sociais ou chefe com cara de boi que arromba a cerca me fez sentir com tanto vigor as fragilidades desta minha vida "mal-acabada" e me apontou com tanta energia minhas limitações físicas quanto as intermináveis surpresas do crescer de uma menina de oito meses.
Descobri com Elis que sou quase incapaz de juntar forças suficientes para entreabrir suas bochechas para fazer biquinho e lá dentro jogar o diabo engarrafado em forma de remédio. Assustador que, com o século 21 bombando, a indústria farmacêutica não tenha criado uma solução menos dramática para pais e filhos pequenos se reencontrarem com os dias de cócegas e risadas.
-Caso ela não tome direito, teremos de botar pela veia- diz a médica, num incentivo draconiano para que eu e mamãe, a contragosto, nos tornemos "exemplos de superação" na criação de nossa pequena e enfrentemos a operação de enfiar goela abaixo o elixir que, se não matar pela combinação química, há de matar pelo azedume.
Nunca senti tanta imobilidade como quando o termômetro insistia em dar aqueles apitos seguidos indicando que a febre não tinha cedido e que seria necessário fingir que o sagrado aviãozinho que costuma carregar a saborosa papinha da vovó faria uma viagem extra levando um xarope de gosto duvidoso.
Pelo conselho dos amigos, essa dor terrível de ver minha melhor parte em sofrimento deve passar quando ela tiver... uns 30 anos e eu, já na casa dos 70, talvez tenha mais sabedoria, equilíbrio e coração menos açucarado para ser aquele pai firme que não chora a cada suspirar descompassado de seu eterno neném.
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