Mariana Sanches - O Globo
SÃO PAULO — Guilherme* estava de mau humor. Deitado em um berço de metal, seu corpo franzino não revelava os 14 anos de idade. Por trás da máscara de um respirador artificial, apenas seus olhos entristecidos apareciam. Uma pneumonia o impedia, naquela manhã, de circular, distribuindo irônicos apelidos a pacientes, enfermeiras e médicos. Desde os sete meses, ele mora no único hospital do Brasil de atenção exclusiva para pessoas com paralisia cerebral grave: a Associação Cruz Verde, na Zona Sul de São Paulo. Nunca foi pra casa, nunca recebeu visitas de parentes. Foi deixado pela família ainda na maternidade, assim que nasceu e recebeu o diagnóstico de que não viveria mais de quatro anos.
Guilherme é um dos 204 pacientes que moram na Cruz Verde. No prédio arejado e iluminado, de paredes claras e equipe sorridente, crianças, adolescentes e adultos que sofrem com paralisia cerebral e microcefalia graves, recebem diversos tratamentos, como fisioterapia, fonoterapia, hidroterapia e terapia ocupacional. Nenhum deles consegue caminhar, todos usam fraldas, a maioria não pode engolir e se alimenta por sondas, poucos falam. Cerca de 70% foram abandonados pelas famílias e irão viver no hospital até a morte.
A paralisia cerebral é uma condição na qual o paciente tem uma ou mais partes do cérebro lesionadas, causando a morte de neurônios. Pode ser provocada enquanto a criança ainda se desenvolve dentro do útero da mãe, por doenças contraídas ou pelo uso de drogas. No momento do parto, por falta de oxigênio, ou nos primeiros anos de vida, por paradas cardiorrespiratórias ou acidentes que afetem diretamente a oxigenação do cérebro.
O estado provoca graves dificuldades motoras, com atrofia e entortamento dos membros, dificuldades respiratórias, epilepsia e algum grau de atraso intelectual. Em alguma medida, todos eles compreendem o mundo ao redor e têm as interações limitadas pelos problemas de fala e de visão que resultam das lesões neurais. A paralisia cerebral pode acontecer associada à microcefalia - situação em que as crianças nascem com cérebros menores ou não o desenvolvem com o passar do tempo - em uma interação ainda pouco explicada pela ciência. O atendimento de cada criança na Cruz Verde é complexo e custa R$ 4 mil por mês.
— As mães que abandonam as crianças não têm qualquer estrutura econômica, social ou familiar para fazer frente ao desafio de cuidar delas. Além do preconceito, da rejeição, essas mães normalmente já foram abandonadas pelo pai da criança. Algumas são usuárias de drogas, não têm família e já têm muitos filhos — afirma a assistente social do hospital Jéssica Pereira da Silva.
Ricardo* tinha 10 anos quando a casa onde morava pegou fogo. Ele era o responsável pelos cuidados de três irmãos menores enquanto a mãe trabalhava. Embora tenha sido o primeiro a sair da casa em chamas, ele acabou voltando para tentar salvar os familiares. Depois de resgatar os irmãos e de inalar uma grande quantidade de fumaça, sofreu uma parada cardiorrespiratória que lhe causou paralisia cerebral grave. Ainda no hospital, Ricardo foi abandonado pela família que salvou. Ocupa há oito anos um dos berços de uma ala da Cruz Verde. Não fala, nem anda. Mas segue o interlocutor com o olhar. Nunca recebeu visita ou foi procurado.
Aos 12 anos, Luana*, que nasceu com paralisia cerebral, pesava apenas 12 quilos quando chegou ao hospital, em extrema desnutrição, depois de ser retirada da família por maus-tratos. Ela depende de uma traqueostomia e um respirador para se manter viva. Júlia*, uma simpática menina de dois anos que distribui sorrisos quando alguém chega perto de seu leito, nasceu de uma mulher que teve sucessivas crises de epilepsia durante a gestação, e teve o cérebro lesionado. A mãe a deixou, visita raramente.
— Quando a mãe vem, ela diz: "isso eu não quero na minha casa". As pessoas não querem cuidar, mal querem olhar, há muito preconceito. Temo que o aumento de casos de microcefalia provoque um surto de abandonos — afirma a neuropediatra, especialista em paralisia cerebral, Adriana Ávila de Espíndola.
A dor da rejeição Fernanda Silva Costa, de 38 anos, conheceu dentro de casa. Ela é mãe de Artur, de 3 anos, que nasceu com microcefalia e paralisia cerebral. A criança não enxerga, não fala, não anda, não consegue se sentar sozinha, não engole nenhuma comida que não seja pastosa. Ela e o marido se desdobram nos cuidados com o pequeno, que incluem uma agenda médica extensa. Mas a mãe de Fernanda, avó de Artur, se recusa a chegar perto da criança.
— Ela não o pega no colo, arruma desculpas para não acompanhar no médico, parece que sente nojo dele. Isso machuca muito. Agora estamos tentando matriculá-lo em alguma escola, mas nenhuma delas aceita, dizem que não têm condições. Os pais não deixam suas crianças chegarem perto do Artur. Não querem deixá-lo entrar na sociedade — conta Fernanda, que leva o filho para tratamento na Cruz Verde.
Além do preconceito, as mães enfrentam a falta de terapias e opções médicas no sistema público de saúde para tratar suas crianças. Pacientes com paralisia cerebral precisam de estimulação contínua para uma maior qualidade de vida. Com custo de R$ 15 milhões anuais, a Cruz Verde se equilibra entre a escassez de verba pública - o SUS custeia 50% das despesas - e a necessidade de doações de mais de 50 empresas para seguir funcionando. Os administradores se assombram diante da possibilidade de que a demanda por seus cuidados aumente diante do nascimento em massa de bebês com microcefalia, resultante da infecção por zika vírus. A superintendente do hospital Marilena Pacios resume a aflição:
— O que faremos agora diante de uma parcela dessa geração nascendo quase sem cérebro? Isso é uma tragédia.
*Nomes fictícios
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