quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Silêncio, sons e letras




“Temos que expandir os nossos horizontes e possibilidades, e não limitá-los”, diz Paula Pfeifer, surda oralizada, em conversa para o PMG.
Paula Pfeifer, 29 anos, é formada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Quando criança, começou a ter problemas com sua audição e descobriu que sofria de uma severa deficiência auditiva. “Começou na infância - naquela época eu ouvia muito mais do que ouço hoje. Atualmente, sem aparelhos, não escuto praticamente nada”, diz. 


Para se comunicar e ter contato com o mundo dos sons, Paula usa aparelhos auditivos de última geração, o que a tornou uma apaixonada pela tecnologia. Blogueira de carteirinha, Paula é surda oralizada - além de falar português e inglês, se vira em outros idiomas. “Arranho um espanhol e entendo muito bem francês”, diz.


Autora de dois blogs, Paulla escreve para o Sweetest Person, que recebe cerca de 200 mil acessos mensais, e o Crônicas da Surdez, onde fala sobre suas viagens pelo mundo, publica depoimentos de leitores com deficiência auditiva, opina sobre acessibilidade, posta dicas de filmes, livros, entre outros assuntos, que chamam atenção de muitos leitores. Conversamos com ela sobre isso e muito mais, confira!


Portal Mara Gabrilli: Você é formada em Ciências Sociais, já passou por dificuldades de acesso ao ensino?


Paula Pfeifer: Sou surda oralizada, ou seja, além de ter a deficiência 'invisível', não uso Libras - e isso faz com que as pessoas achem que eu deva 'me virar'. No colégio e na faculdade, penei com os professores que falavam de costas para mim. Quem é surdo perde MUITO (para não dizer tudo) do que é dito em sala de aula, e precisa quadriplicar os estudos em casa. Cansei de sair tonta das aulas e com dor de cabeça de tanto esforço que precisava fazer na leitura labial.


PMG: Você também é funcionária pública, como foi ingressar no funcionalismo público?


Paula: No início foi um pouco estranho, pois foi a primeira vez na vida que precisei lidar com a palavra deficiência, e também com a ignorância e maldade alheias. Mas penso que pessoas com deficiência têm a missão de agir como disseminadores de informação, ou seja, em vez de apenas ficar triste com comentários e atitudes dos outros, é muito mais útil educar essas pessoas a respeito do assunto. Não se pode esperar que quem não lide com qualquer tipo de deficiência no dia-a-dia tenha algum conhecimento sobre isso.


PMG: Que ideias você expõe no ‘Crônicas da Surdez’?


Paula: O Crônicas é um mix interessante: falo das minhas viagens pelo mundo, publico muitos depoimentos de leitores com deficiência auditiva, falo do que considero certo e errado em termos de acessibilidade, posto dicas de filmes, livros, etc.


PMG: E qual a receptividade dos seus leitores? Eles se interessam pelo universo da surdez?


Paula: Com certeza. Recebo emails todos os dias de leitores do Brasil todo, de Portugal, de médicos, fonoaudiólogos, psicólogos e profissionais que lidam com pacientes com deficiência auditiva.


PMG: Além do Crônicas da Surdez você também tem outro blog, o Sweetest Person, você sempre gostou de escrever?


Paula: Sempre, e muito. E de ler também. O Sweetest Person alcança quase 200.000 pessoas por mês e isso me deixa muito feliz.


PMG: Por falar nisso, seu trabalho de conclusão de curso fala sobre a Paula: escolha que a família do surdo faz sobre a modalidade linguística, que seria a oral ou de sinais. E na sua família, como ocorreu esta escolha?


Paula: Minha surdez foi pós-lingual, ou seja, não haveria motivo nenhum para que eu aprendesse Libras. É preciso desmistificar de uma vez por todas a idéia errada de que todo surdo é mudo, todo surdo usa Libras, todo surdo precisa de intérprete. A surdez é uma deficiência heterogênea, e além disso muitas pessoas perdem a audição depois de adultas. Os surdos oralizados têm necessidades totalmente diferentes dos surdos sinalizados.


PMG: Qual a sua opinião sobre a educação bilíngüe?


Paula: Penso que os surdos pré-linguais terão muito mais oportunidades profissionais e educativas na vida se optarem pela educação bilíngue. De certa forma, usar apenas a Libras é ser um estrangeiro dentro de seu próprio país. Se eu tivesse nascido totalmente surda e tido a Libras como primeira língua, não abriria mão, de jeito nenhum, de aprender o português. Especialmente porque não gostaria de viver presa somente a um grupo de pessoas e nem de viver em função da minha deficiência. Sei que a maioria dos surdos sinalizados não quer se 'submeter' ao mundo dos ouvintes e não quer se comunicar oralmente, mas, na minha opinião, é muito importante que se saiba, ao menos, ler e escrever em português. E, porque não, em todas as línguas que se tiver vontade: inglês, espanhol, francês, italiano, etc. Temos que expandir os nossos horizontes e possibilidades, e não limitá-los.


PMG: O Governo tem acatado as críticas da comunidade surda?


Paula: O governo acata o senso comum burro de que todo surdo é mudo, todo surdo usa Libras, todo surdo precisa de intérprete e de tecnologias completamente obsoletas e inúteis como o telefone TDD. Ocorre uma exclusão dentro do próprio grupo de excluídos: agem como se os surdos oralizados não existissem. A prova disso é que são disponibilizados intérpretes de Libras em escolas, faculdades, bancos, etc.., mas qualquer pedido de acessibilidade para surdos oralizados (SMS, email, chat, internet) é negado.  A acessibilidade para oralizados não exclui a dos sinalizados, pelo contrário, elas se complementam.


PMG: E como é a acessibilidade no Rio Grande do Sul?


Paula: No Rio Grande do Sul, surdos oralizados se vêem de mãos atadas no quesito acessibilidade. Escrevi um post sobre isso na semana passada. Polícia, bombeiros, ambulâncias, bancos e serviços de primeira necessidade precisam urgentemente estabelecer atendimento através de chats 24hs, SMS ou email. Quem não escuta no telefone e não tem o obsoleto TDD em casa faz o que? Morre de infarte, vê a própria casa pegar fogo, arca com os gastos de um cartão clonado? Não acho justo. Pelo menos a Concepa (concessionária de algumas rodovias no RS) já instituiu o atendimento via SMS - assim, se eu me acidentar sozinha na estrada à noite, por exemplo, posso chamar o resgate mandando uma mensagem em vez de morrer presa nas ferragens.


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