quarta-feira, 27 de abril de 2016

Cupidos, cães-guias ajudam casal de deficientes visuais a se apaixonar


JAIRO MARQUES
DE SÃO PAULO
27/04/2016
02h00

O casal Genival e Kátia, deficientes visuais, começaram o namoro quando foram buscar os cães-guia.O Dia Internacional do Cão-Guia, comemorado nesta quarta-feira (27), traz razões múltiplas para ser muito festejado na casa do advogado Genival Santos, 37, e da cientista de dados Katia Antunes, 33, ambos cegos e usuários dos bichos trabalhadores há nove anos.

O casal, que mora em São Paulo, se aproximou, se apaixonou e se casou graças a um outro encontro amoroso, o de seus cães-guias: a labradora com golden retriever Leila, 10, e o labrador caramelo Sam, que vieram juntos, de Michigan, nos EUA, para serem a retomada da "luz dos olhos" dos dois.

"Fomos buscar os cães nos EUA, por meio do Instituto Iris, na mesma época [em 2006]. Durante os treinamentos de comando do cão, de até 12 horas por dia, aproveitava para paquerar a Katia, enquanto o Sam brincava com a Leila", diz Genival.

Já no Brasil, o casal foi estreitando laços no intuito de "tirar dúvidas" sobre cuidados com os peludos. Acabaram se casando há cinco anos e juntando a cachorrada.

"Brinco que, hoje, os cães são mais ligados que eu e meu marido. Um não larga o outro. A Leila faz o Sam até de travesseiro", conta Katia, que perdeu totalmente a visão há seis anos. Ela chegou a conhecer visualmente os traços do marido.

Segundo o relato de Genival, é "muito amor envolvido" entre cães e gente.

"Chego mais cedo em casa com a Leila e ela fica aguardando o Sam e a Kátia. Não sei como, mas quando eles estão há uns 500 metros do portão ainda, ela consegue saber que estão se aproximando e fica inquieta."

A importância dos cães para a dupla é tão grande que até a casa onde moram atualmente foi escolhida para acomodar com conforto a dupla canina. Tem quintal, um quarto só para eles e muito espaço para correria.

APOSENTADORIA

Juntos, os quatro já foram para Argentina, Portugal, Uruguai e zanzaram de norte a sul do Brasil. Agora, Katia e Genivaldo se preparam para um momento delicado, o de aposentar seus bichos.

"O Sam ainda consegue manter a rotina de trabalho comigo normalmente, mas o ritmo está diminuindo. Ele está mais cansado e em breve terá de parar", conta a dona.

A cadela Leila também sente as dores do tempo. Até para ser escovada, pela manhã, sente um incômodo na coluna. "Eles estão muito acostumados com o contato com gente o tempo todo. Quando aposentarem, teremos de ter uma auxiliar em casa para fazer companhia a eles ou terão de ficar na casa da avó [da sogra]", afirma o dono.

Mesmo com a chegada dos novos condutores de seus passos, o que ainda não tem data prevista, Katia e Genival não vão abrir mão da antiga dupla de cães e cupidos.

"Fiquei cego aos 17 anos e vivi muitos momentos de revolta. Odiava a minha condição. A Leila veio trazer esperança, nova vida e nova visão, literalmente. É mais do que justo darmos uma velhice digna para nossos cães."

Nos próximos anos, a cachorrada vai se juntar a um bebê, plano futuro do casal.

"Estamos planejando tudo muito bem. Primeiro, vamos resolver a questão dos novos cães, depois, tentamos um bebê", diz Katia.

Pelo Censo 2010 do IBGE, o Brasil tem 582 mil pessoas cegas e outras 6,5 milhões com baixa visão. Estimativas não oficiais dão conta que entre 100 e 150 deles têm acesso a um cão-guia, que tem valor de treinamento estimado em até R$ 60 mil.

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Deficiente visual supera preconceito e busca sonho de ser zootecnista


Determinação. Esta é a palavra que resume a trajetória de Hugo Pereira Antonio, deficiente visual que busca o sonho de ser zootecnista. Natural de Angra dos Reis, Hugo possui cegueira total devido a ação de um câncer no nervo óptico adquirido aos três anos de idade. Hoje, aos 22, o estudante não tem dúvidas do que quer: se formar e trabalhar com animais não ruminantes.

Hugo conheceu a zootecnia em 2011, através de uma pesquisa sobre profissões antes de prestar o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). A identificação foi instantânea. O campo e a produção animal sempre foram suas paixões.

“Me identifiquei com a zootecnia por ser um curso que tem extrema importância no campo e atuação direta na área de produção animal. Trabalhar com animais, especificamente animais de fazenda, sempre foi a minha vontade.

Segundo Hugo, que cursa o 7º período de zootecnia na Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF), a falta de visão nunca foi um impeditivo para que ele chegasse aonde quer.

“Esse foi só mais um desafio de tantos já enfrentados. Das minhas limitações, não seria a falta de visão que ia me impedir de mais essa busca”.

Em um curso que, aparentemente, exige a necessidade da visão, Hugo prova, diariamente, que, com auxílio e determinação, é possível estudar as práticas zootécnicas. Porém, para ele, o mercado e o meio acadêmico ainda têm preconceitos com profissionais que possuem deficiência.

“Existe preconceito com deficientes no mercado e a zootecnia não está fora disso. Pelo contrário. Mas creio que a partir do momento que provei para mim mesmo que eu sou capaz, ninguém mais me segura. O meio acadêmico peca em querer impor limite no deficiente, quando só o próprio deficiente pode determinar seus limites, como qualquer outro ser humano”.

quarta-feira, 6 de abril de 2016

O meu primeiro passinho




Gosto de pensar que ela sabia que aquilo para mim não seria jamais mais uma das tantas novidades de seu crescer, pois a danada, antes de partir para o mundo, agarrada nos braços da mamãe, olhou fixamente para mim e soltou um sorriso de encantar brutamontes. Sou capaz de dizer que uma onda de pensamento reproduzia a mensagem dentro de nossas mentes: “Olha isso, papai, é por mim e é para você”.





Cambaleante, descompromissada e frenética, minha Elis já ensaia o andar há uns três meses. Seguramente, em quase 11 viradas de calendário de vida, minha biscoita já caminhou com as próprias pernas e algum apoio bem mais do que eu, com 41 anos. É, tinha de começar bem cedo para requintar esta história.

Não guardo nenhum azedume por ser cadeirante desde que me entendo por gente, mas ver minha filha “firminha” no chão, em pé, trocando passinhos, me trouxe uma realização íntima cuja explicação satisfatória ainda procuro.

Talvez seja porque, finalmente, uma parte de mim, pelo que tudo indica, será capaz de decidir se quer correr ou não quando tocar o sino da hora do recreio na escola, se quer ir à Bahia e subir de carreira as escadarias do Senhor do Bonfim, se quer ir àquele show de rock, ficar no meio da galera, apenas pelo prazer de escutar uma de suas canções favoritas.

Elis não vai andar por mim, é claro. Sou eu quem andarei com ela, guardado dentro de genes, trejeitos e manias que de tão semelhantes aos meus nos fazem inseparáveis mesmo que, em algum momento, ela oportunamente diga “larga do meu pé, pai!”.

Realizar-se completamente e intimamente com uma ação realizada pelo outro me parece sinal de alguma evolução, de algum desprendimento que me foram presenteados com a paternidade e que eu nem imaginava que fosse possível. É um fenômeno que considero orgânico, muito mais que sentimental.

Nem que o Bolshoi russo fizesse um bailado especialmente para mim, com a emoção e perfeição de seus movimentos todos dedicados a mim, eu teria uma sensação tão complexa como a que sinto vendo os pezinhos gordinhos de Elis tateando um rumo em busca de nada além de boas gargalhadas.

Aos poucos, ela já começa a se virar sozinha à procura de estradas para trilhar seu destino. Por enquanto, ele não passa do atendimento ao chamado histérico da Galinha Pintadinha ou de uma outra canção que fala do anjo querubim. Atende também ao convite para passear no parquinho ou para qualquer lugar que se vá assim que alguém aciona a maçaneta da porta. É destemida, atrevida e astuta, do mesmo jeito que suponho serem os grandes andarilhos.

Pise firme por suas convicções de justiça, filha. Aperte o passo em busca de mais igualdade entre as pessoas. Ponha o pé nos protestos que melhor lhe convierem. Bata perna atrás de refresco para os pensamentos ou em busca de leveza para sua alma.

Espero que, por mais alguns anos, quiçá por algumas décadas, você tenha sempre à disposição o colinho do papai, sentado em sua cadeira libertadora que virou asas para conquistar a mamãe, livre para recebê-la para um descanso ou para ouvir um causo de seus inquietos passos.