segunda-feira, 14 de março de 2011

Caminhos possíveis?

Um panorama da acessibilidade em São Paulo: a cidade atende as necessidades das pessoas com deficiências?

Data: 14/03/2011


No meio do caminho tinha uma pedra. Tinha uma pedra no meio do caminho.” Este trecho do famoso poema de Carlos Drummond de Andrade pode muito bem refletir os problemas da acessibilidade na metrópole paulista.

Não apenas para cadeirantes e pessoas com mobilidade reduzida, como também para cidadãos com deficiência visual, idosos e gestantes, a cidade conta com obstáculos que impedem a circulação tranquila e sem riscos.

Basta olhar para baixo. Às vezes esburacadas, outras vezes com a presença de impedimentos e em alguns casos até inexistentes, as calçadas ainda precisam de muitas reformas para oferecerem livre acesso à população.

Tânia Ieda Medeiros Vale, 47, que o diga. Após sofrer um acidente de carro em fevereiro de 2008 ela tenta se adaptar sobre rodas. Os desníveis, os buracos e a falta de rampas nas calçadas, porém, têm afastado a paulistana das ruas. “É muito difícil sair de casa. Eu preciso de um acompanhante para me ajudar, pois subir degraus com a cadeira para mim é impossível”, relata. Moradora do Tatuapé, Tânia passou a fazer compras pelo telefone e a sair apenas em casos estritamente necessários, como quando vai às sessões de reabilitação e fisioterapia. Nessas situações, acaba contratando uma acompanhante para auxiliá-la.


Calçadas em ordem

Mas, afinal, de quem é a responsabilidade pela manutenção das calçadas? De acordo com a Prefeitura de São Paulo, “o proprietário do imóvel, seja comercial ou residencial, é responsável pela conservação, manutenção e reforma da calçada em frente ao seu imóvel. Sendo que aquelas em situação irregular ou precária são passíveis de multa”.

Apesar da polêmica que essa resolução gera, cabe a todos os cidadãos a conservação e a manutenção do passeio público em frente a sua residência. Antes de realizar qualquer reforma ou melhoria, porém, a recomendação do órgão público é que se entre em contato com a Subprefeitura da região. É importante lembrar que para plantar uma árvore ou instalar algum objeto na calçada o procedimento deve ser o mesmo.


Casa adaptada

Além da necessidade de encontrar acessibilidade nas ruas, a adaptação dos lares também é importante para garantir às pessoas com deficiência um dia-a-dia ativo. Na casa de Tânia, por exemplo, sua irmã Maria Gorete providenciou uma grande reforma. Os desníveis e degraus foram retirados e todas as portas ficaram mais largas, para permitir o trânsito da cadeira de rodas com mais facilidade.

O banheiro também ganhou uma nova estrutura e a frente da casa recebeu uma rampa. A instalação de um varal mais baixo e com hastes que podem ser puxadas separadamente, além de uma máquina de lavar com abertura frontal foram outras das inusitadas instalações.


Pela inclusão

Após o acidente, Tânia conheceu e passou a fazer parte do Movimento Inclusão Já, do qual hoje é primeira secretária. O objetivo do grupo, criado em janeiro de 2004, é buscar os direitos das pessoas com deficiência, além de melhorias para a sociedade de forma geral.

“O movimento surgiu basicamente das necessidades dessas pessoas. Lá fui formando guerreiros, pais e mães de pessoas com deficiência, ensinando os indivíduos a levantarem suas cabeças, partirem para a luta e praticarem cidadania, a fim de buscarem seus direitos”, explica o presidente do grupo, Valdir Timóteo.

Timóteo é cadeirante. Ele sofreu uma lesão medular de nível T6 e T7 após um acidente de carro em novembro de 2000 e ficou paraplégico.

Quatro anos depois do ocorrido, quando já estava fazendo a reabilitação, surgia o grupo: “Posso afirmar que o Movimento Inclusão Já nasceu do descaso que o poder público sempre teve com as pessoas que tem alguma deficiência, da nossa revolta contra os maus tratos recebidos dele e de grande parte da sociedade e também da falta de acessibilidade e de prestação de serviços públicos voltados ao segmento dos indivíduos com deficiência e mobilidade reduzida”, ressalta ele.

Uma das atividades realizadas pelo movimento é organizar passeios e eventos para que os participantes possam viver momentos de lazer e também compartilhar experiências. “Uma das nossas atividades principais é tirar pessoas com deficiência das suas ‘prisões’ domiciliares para eventos em parques e atividades culturais e mostrar a elas e a seus familiares que existe vida além das quatro paredes de seus quartos. Nosso trabalho é trazê-los para o convívio social”, conta Timóteo.

“Tem muitas pessoas que, na vida, só saíram para passear acompanhadas de membros do Movimento”, acrescenta Tânia.

Além dessa interação social, outro foco do grupo é trabalhar em favor de medidas práticas, cobrando do poder público o respeito às leis de inclusão e o investimento em estruturas de acessibilidade.

Um dos projetos é o “Mutirão da inclusão através de emendas”, que sugere o direcionamento de parcelas da Emenda Parlamentar dos políticos para propostas de inclusão social e acessibilidade. A emenda é a verba que os vereadores, deputados e senadores têm direito para que destinem à iniciativas e melhorias de interesse público.

Para isso, Timóteo e sua esposa, Francisca Lucineide da Silva Leite, constantemente visitam a Câmara Municipal de São Paulo. Em uma dessas ocasiões, a equipe da Revista IN acompanhou-os, com o objetivo de analisar as estruturas de acessibilidade da cidade. Confira o trajeto.

11h42: Início do trajeto
Para sair da casa de Valdir, em Itaquera, e pegar o ônibus é preciso descer uma rua íngreme. Durante o percurso, é necessário seguir com a cadeira pela rua. As calçadas não possuem acessibilidade.

11h52: Transporte público

Ao chegar ao ponto de ônibus, outra surpresa: sem qualquer cobertura, a única indicação é a de uma viga de madeira. No local, a calçada também não possui rampas. Para Valdir subir, precisou de ajuda da equipe.

11h59: Chegada do veículo

Após sete minutos de espera, passou um ônibus adaptado com destino ao Metrô. Além do espaço reservado a pessoas com deficiência, também possuía elevador para subir a cadeira de rodas.

12h05: Embarque

Devido à falta de acessibilidade da calçada, porém, o embarque foi difícil e levou mais alguns minutos.

12h41: No Metrô

Na estação Itaquera, o elevador levou Timóteo ao andar do embarque. As dimensões reduzidas da instalação, no entanto, não permitem aos cadeirantes virarem a cadeira. Ou seja, se entram de frente irão sair de costas e vice-versa. Para embarcar no vagão do Metrô foi necessária ajuda, devido ao vão entre a plataforma e o trem e ao desnível entre as estruturas.

13h08: Desembarque

Foi feito na estação Sé, onde Timóteo também teve acesso ao elevador e enfrentou o mesmo problema de espaço.

13h45: Chegada

Para chegar à Câmara, o percurso foi feito a pé. Em função das irregularidades da calçada e da inclinação de deteminados locais, ele teve de contar com uma pessoa para auxiliá-lo segurando a cadeira.

Com a boca no trombone

Sobre a acessibilidade da cidade, Timóteo analisa: “Chegar a um ponto de ônibus sozinho é impraticável. Pouquíssimas pessoas com deficiência conseguem superar as ruas e calçadas totalmente irregulares. Grande parte dos pontos nos bairros são estacas pintadas e fincadas no chão, sem cobertura para nos proteger do sol ou da chuva. Sem contar que não existem rampas para acessar esses locais.”


Atende?

Um dos programas municipais de transporte público das pessoas com deficiência é o Serviço de Atendimento Especial, o Atende. Criado por decreto em maio de 1996, trata-se de uma modalidade gratuita de transporte porta a porta, destinada a indivíduos deficientes com alto grau de severidade e dependência, oferecido pela Prefeitura de São Paulo.

No dia 6 de agosto de 2001, entretanto, em uma audiência pública ficou decidido que o serviço não atenderia mais casos de consultas e exames. Desde então, o atendimento só ocorre nas situações em que há planejamento de viagens. A justificativa para isso era o atendimento de um maior número de pessoas.

Para Timóteo, porém, essa decisão é excludente e discriminatória. “Essa mudança acaba excluindo muita gente e afeta especialmente os mais pobres, que não têm condições para pagar um táxi e deixam inclusive de fazer parte da triagem para começarem um tratamento”, declara.

Elaine Cristina da Silva Barbosa e o seu filho Ronaldo Barbosa Alves, 5, que possui deficiência múltipla, são usuários do Atende após dois anos aguardando na fila pelo serviço. Com relação à busca por atendimento e melhorias, Timóteo orienta: “As pessoas têm de ir atrás de seus direitos. Nós temos que colaborar com o poder público criticando quando estão errados e propondo soluções para os problemas. Só teremos uma sociedade mais justa se o cidadão contribuir na construção de políticas públicas”, orienta Timóteo.

Para fazer a inscrição no programa, os interessados devem comparecer a um posto da SPTrans ou à Subprefeitura e retirar a Ficha de Avaliação Médica, também disponível para impressão pelo site (www.sptrans.com.br).


Barreiras

Como Ronaldo recebe tratamento em três locais diferentes e o Atende só possibilita viagens para dois endereços distintos por semana, às quintas-feiras Elaine e Ronaldo têm de usar o transporte público.

A respeito dos problemas enfrentados nesse aspecto, ela afirma: “Para ir até o ponto de ônibus, temos que andar no meio da rua, disputando espaço com os carros. No centro da cidade, eles se preocupam muito com as calçadas, mas nos bairros às vezes nem tem. Eles esqueceram que as pessoas com deficiências também moram nesses locais”.

A falta de ônibus adaptados com elevador para subir a cadeira de rodas também tem sido um empecilho, pois, segundo ela, quando o veículo possui espaço para o embarque de pessoas com deficiência mas não conta com essa estrutura, muitos motoristas se negam a embarcá-los.

Na semana anterior à entrevista, por exemplo, Elaine afirma ter esperado uma hora com Ronaldo para pegar o ônibus. “Fiquei com meu filho esperando debaixo do sol. Passou um ônibus adaptado e o motorista jogou o veículo para o meio da avenida e fez sinal de não com o dedo, passando direto”, relata.


Lugar reservado

Devido a Diabetes, o aposentado e conselheiro do Conseg - Conselho Comunitário de Segurança da Mooca - Paschoal Fienga, 75, teve de aderir à bengala e passou a fazer parte da população com mobilidade reduzida, recebendo o direito, por exemplo, de estacionar em vagas reservadas a esse público.

Para Fienga, no entanto, é preciso aumentar a fiscalização sobre o uso dessas vagas que, segundo ele, muitas vezes acabam sendo utilizadas por pessoas sem deficiências.“Isso é uma falta de educação e deve haver uma maior fiscalização. Os veículos devem estar identificados com o adesivo”, ressalta.

Esse cartão a que ele se refere, que identifica os carros de pessoas com deficiência, é o DeFis-DSV e possui uso obrigatório em vias públicas, podendo gerar multas quando não utilizado. Mais informações sobre como retirar o cartão podem ser obtidas pelos fones: 3812.3281 e 3816.3022.


Com a ponta dos dedos
Às pessoas com deficiências visuais, a cidade de São Paulo também apresenta barreiras que dificultam a acessibilidade. Para a estudante Maria da Consolação Rodrigues, 27, que veio de Fortaleza para continuar os estudos na Fundação Dorina Nowill, “a acessibilidade ainda é precária”.

Apesar de todos os avanços da metrópole, Sol, apelido de Maria, reclama das calçadas esburacadas e cheias de obstáculos, como mesas e cadeiras. “A Prefeitura deveria ver isso”, reclama. Para a jovem, que tem que andar sozinha, muita coisa ainda precisa mudar para lhe oferecer segurança e tranquilidade. “Faltam faróis sonoros e faixas táteis nas calçadas”, complementa.

Praticamente autodidata em braille, a estudante hoje cursa o Ensino Médio. Ela está a procura de emprego e, enquanto não encontra, faz artesanato. O crochê ela aprendeu sozinha, desmanchando um bordado feito pela mãe. Já o tricô conheceu depois, em um curso.

Sobre a acessibilidade na cidade de São Paulo a professora de orientação e mobilidade da Fundação Dorina Nowill, Suzete Rugno Arruda, comenta: “Na região periférica muito se tem a fazer. Encontramos calçadas inadequadas, lixo e esgoto a céu aberto o que dificulta a locomoção do deficiente visual e da população de forma geral.”

Para Suzete também faltam mudanças no transporte público: “Apesar de termos ônibus que se dizem acessíveis, eles ainda são inadequados, têm degraus e a sinalização é visual. A frota de veículos acessíveis é pequena. Faltam semáforos sonoros que facilitem a travessia das ruas. As calçadas com degraus e desníveis muito altos dificultam a locomoção”, esclarece.

A profissional destaca que conseguir um cão-guia no Brasil ainda é algo muito raro e complexo, sendo que apenas 60 pessoas, aproximadamente, contam com esse benefício. As mudanças mais importantes para oferecer autonomia às pessoas com deficiência visual, segundo Suzete, são “a melhoria e a conservação do passeio público, a sinalização sonora em semáforos e pontos e ônibus e os pisos podotáteis em torno de obstáculos com altura superior a 60 cm, o que está previsto em norma”, conclui.

Com relação à difusão de obras em braille e dos audiobooks (livros falados), a gerente de distribuição de produtos da Fundação Dorina Nowill, Susi Maluf afirma: “Uma pesquisa recente da Fundação Getúlio Vargas revelou que apenas 9% das bibliotecas públicas municipais possuem seção com obras em braille, faladas e digitais acessíveis”. Em contrapartida, Susi declara que os usuários da Biblioteca Circulante de Livro Falado da instituição leem cerca de nove livros por ano, enquanto a média brasileira é de 1,3 livro.


Cliques da inclusão
Apaixonada por fotografia desde pequena, Kica de Castro conseguiu unir o útil ao agradável quando abriu uma agência de modelos com deficiência. Sua iniciativa tem alcançado sucesso no Brasil e no exterior e, o mais importante, por meio dela essas pessoas têm conseguido resgatar sua autoestima e a sociedade tem percebido que a inclusão profissional desse grupo é uma realidade e que, com ela, todos só têm a ganhar.

Kica profissionalizou-se como fotógrafa em 2000, época em que atuava em eventos sociais, como casamentos e festas corporativas. Em 2002 a profissional passou a tirar fotografias científicas em um centro de reabilitação para pessoas com deficiências físicas, o que foi a semente de seu atual trabalho. “Em 2003, fazia na instituição o resgate da autoestima das pessoas com deficiência, ao que dei o nome de fototerapia”, comenta.

“No ano de 2005, as meninas começaram a procurar oportunidades no mercado de trabalho como modelo, levavam as fotos de book feitas por mim nas agências e a resposta sempre era a mesma: ‘ Não temos nada para o seu perfil’, o que acabava com a autoestima das garotas”. Após uma ampla pesquisa sobre a inclusão de pessoas com deficiência no mundo da moda, em 2007 ela abriu uma agência de modelos especializada. “Hoje temos bons resultados nos anúncios e nas passarelas”.

Apesar do sucesso de sua iniciativa, porém, Kica destaca que o preconceito ainda existe: “Ele é a pior deficiência da Humanidade. Muitas pessoas julgam sem saber, fazem uma avaliação do perfil sem antes dar oportunidade de conhecer a pessoa. Ainda escuto de muitos empresários que vão deixar para fazer campanha social em uma próxima oportunidade e o que mostro é que a campanha não é social e sim voltada para um público consumidor que tem algum tipo de deficiência”.

Fonte: Revista IN

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