Nem sempre o luto aparece só quando alguém morre. Às vezes, ele chega em silêncio, quando a pessoa percebe que já não escuta como antes: a voz de quem ama, a música preferida, o barulho da chuva, a conversa em família. Perder a audição, total ou parcialmente, é também perder um jeito de estar no mundo — e essa dor é real, legítima e merece ser acolhida.
Quando o som se afasta, o coração sente
Quem ainda escuta bem costuma achar que “é só falar mais alto”, “é só usar aparelho” ou “é só prestar mais atenção”. Mas, para quem está perdendo a audição, nada é “só”.
Cada dificuldade em entender uma frase, cada “hã?” repetido, cada risada que a pessoa perde porque não ouviu a piada… tudo isso vai se somando dentro do coração.
A perda auditiva pode ser gradual ou de uma vez. Pode vir com a idade, com alguma doença, com um acidente, com o uso de remédios ou mesmo ser congênita (a pessoa já nasce com ela). Em todos os casos, há um ponto em comum: a vida muda, e essa mudança pode doer muito.
O que, de fato, se perde quando se perde a audição?
Perder audição não é “só” deixar de ouvir sons. É muito mais do que isso:
-
Perde-se a facilidade de acompanhar conversas em grupo.
-
Perde-se a segurança de saber de onde vem um barulho.
-
Perde-se, às vezes, a espontaneidade nas relações: o medo de não entender faz a pessoa ficar mais quieta.
-
Perde-se um pedaço da própria história emocional com a música, com as vozes, com os sons da casa.
E, em muitos casos, a pessoa ainda ganha de brinde:
-
Comentários capacitistas (“Mas você não parece surdo(a)”, “acho que é frescura”).
-
Brincadeiras sem graça (“falei e você nem ouviu, tá surdo?”).
-
Impaciência de quem não quer repetir o que falou.
Por trás de tudo isso, existe luto. Luto pelo que se tinha e não tem mais. Luto pelo jeito antigo de participar das conversas, das reuniões, dos encontros.
O luto pelo silêncio: sentimentos que quase ninguém vê
A perda da audição pode trazer sentimentos difíceis, que muitas vezes são vividos em segredo:
-
Tristeza por não ouvir mais a voz de alguém querido como antes.
-
Vergonha de pedir para repetir, de não entender, de usar aparelho ou de usar Libras.
-
Raiva da situação, do corpo, dos outros, de Deus…
-
Medo de incomodar, de ser visto como “problema”, de ser deixado de lado.
-
Cansaço mental por tentar acompanhar tudo lendo lábios, prestando atenção redobrada, tentando montar “pedaços” de informação.
Tudo isso faz parte do luto. Não é frescura, não é drama, não é ingratidão. É humano.
O que atrapalha: frases e atitudes que machucam
Algumas frases, mesmo ditas “de boa intenção”, acabam ferindo:
-
“Pelo menos você não perdeu a visão…”
-
“Tem gente em situação pior.”
-
“É só se acostumar com o aparelho.”
-
“Você não escuta, mas enxerga, já tá ótimo.”
-
“Se fizer um esforço, dá pra ouvir, sim.”
Essas frases têm um problema sério: elas cortam o direito de sentir. Em vez de acolher, silenciam a dor. Em vez de abraçar, cobram “força” e “superação” imediata.
Outra atitude que machuca é falar com a pessoa como se ela fosse menos capaz, só porque não ouve bem:
-
Falar olhando para outro, e não para ela.
-
Pressupor que ela não vai entender.
-
Ignorar suas opiniões em reuniões, decisões de família, conversas importantes.
Perda auditiva não é sinônimo de incapacidade intelectual. A pessoa continua sendo ela mesma — com história, opiniões, desejos, limites e capacidades.
Como apoiar de verdade: família, amigos e profissionais
A boa notícia é que é possível apoiar sem invadir, ajudar sem infantilizar. Alguns caminhos:
-
Olhe nos olhos de quem está falando com você, para facilitar a leitura labial e a compreensão.
-
Fale de frente, não de costas, nem saindo do cômodo enquanto fala.
-
Fale com calma, articulando as palavras, sem gritar nem exagerar na expressão do rosto.
-
Pergunte: “Assim tá bom pra você?”, “Você prefere que eu escreva?”, “Quer que eu repita?”
-
Não finja que entendeu nem faça piada se a pessoa pedir para repetir.
-
Explique aos outros (com autorização da pessoa) que ela tem perda auditiva e ensine o grupo a se comunicar melhor.
Profissionais de saúde, educação, atendimento ao público e serviço social podem:
-
Priorizar atendimento em locais menos barulhentos.
-
Escrever informações importantes.
-
Verificar se a pessoa compreendeu realmente o que foi explicado.
-
Encaminhar para serviços de fonoaudiologia, otorrino, audiologia, Libras, grupos de apoio.
Ser acolhedor não exige grandes tecnologias: exige disposição para adaptar a forma de se comunicar.
Ferramentas e recursos que ajudam a reconstruir o caminho
Reconhecer o luto é importante, mas também é importante saber que existem caminhos de reconstrução:
-
Libras (Língua Brasileira de Sinais) – para muitas pessoas, é uma nova porta de comunicação, de cultura, de identidade.
-
Aparelhos auditivos e implantes – não são mágicos, nem perfeitos, mas podem ampliar oportunidades.
-
Legendas em vídeos, filmes, reuniões online – recurso simples que beneficia não só quem tem perda auditiva.
-
Aplicativos de transcrição de fala para texto – que ajudam em consultas médicas, reuniões, aulas.
-
Grupos de apoio e associações – onde a pessoa descobre que não está sozinha, troca experiências, aprende direitos.
Esses recursos não “apagaram” a dor da perda, mas podem construir novas formas de presença no mundo.
Para quem está vivendo essa perda
Se você está passando por uma perda auditiva, lenta ou rápida, deixo aqui alguns recados:
-
Você tem direito de sentir o que sente.
-
Você não é fraco(a) por chorar, por ficar com raiva ou por se sentir cansado(a).
-
Pedir ajuda não diminui o seu valor.
-
Aprender Libras, usar aparelho auditivo, usar legenda, pedir para repetir não te faz “menos” — te faz alguém que está se cuidando.
-
Você continua sendo você: com história, fé, sonhos, projetos. A perda auditiva muda o caminho, mas não cancela a sua existência.
Se puder, procure informação, serviços especializados, grupos de apoio. E, principalmente, pessoas que saibam te ouvir — mesmo quando o ouvido físico já não dá conta do recado.
Quando o som se afasta, o vínculo pode permanecer
Perder a audição é, sim, viver um tipo de luto. Mas luto não é o fim: é um processo. Com respeito, informação, acessibilidade e afeto, é possível construir um jeito novo de se comunicar, de participar da vida, de se relacionar.
Mesmo quando o som se afasta, o vínculo pode permanecer.
O amor não depende do volume do mundo, mas da profundidade com que a gente se esforça para continuar presente na vida do outro.

Nenhum comentário:
Postar um comentário