Por JAIRO MARQUES
Parte importante das pessoas acredita que ter uma deficiência, ser meio torto das partes ou dos sentidos, impõe ao “serumano” sofrimento constante, peso de viver e uma tristeza do jeca. Imporia também chateações pela privação daquilo que não se pode fazer como correr atrás do gato no quintal ou ver nuvens em formatos de coração no céu.
Como membro da trupe dos “quebrados”, digo com tranquilidade que o maior desafio de conviver com limitações físicas ou dos sentidos passa longe disso tudo e bem perto dos obstáculos que a ignorância, o preconceito e o desconhecimento de causa criam em torno de uma condição “mal-acabada”.
Com frequência, tenho de sofrer com ácido no estômago devido a questionamentos puramente discriminatórios sobre minhas capacidades, habilidades e disposição para viver como qualquer outro cidadão.
A última aconteceu durante meu atrevimento de querer comprar uma casa um pouquinho maior para abrigar a “famiage”, com se diz lá na minha terra. Fui ao banco (Citi) pedir um crédito imobiliário, preenchi dezenas de papéis, apresentei documentos, provei que sou quebrador de pedra e trabalho de sol a sol, igual a todo o mundo.
Dias depois, a resposta da agência, traduzida em meu dialeto: “Seu Jairim, de modos que o sr. tenha se declarado aleijado, a seguradora (SulAmérica Seguros) exige que, para seguir com o seu processo, seja apresentado um laudo médico em que esteja provado que o seu dodói não tenha repercussões em sua vida e que você ainda presta para alguma coisa”.
A partir do momento em que uma pessoa com deficiência precisa provar que não é doente, algo de muito errado sobre as diferenças ainda corre por veias preconceituosas de alguns setores sociais. Ser cadeirante, ser surdo, ser cego é condição humana, não um martírio pelo qual se precisa responder durante toda a existência. Tudo isso, nas barbas da aprovação da Lei Brasileira de Inclusão, no Congresso.
Perguntei à seguradora a razão de uma atitude tão frontalmente contrária a tudo o que se debate sobre direitos de igualdade de oportunidade. A resposta: “As solicitações de declaração de saúde e de informações complementares estão previstas na resolução nº 205/2009 e na circular nº. 251/2004 da Susep (Superintendência de Seguros Privados). Os procedimentos são comuns a diversas modalidades de apólice, existindo para os casos em que há apontamento espontâneo de intercorrência prévia física ou de saúde e não se aplicando exclusivamente a pessoas com deficiência.” A Susep, uma autarquia do governo, não se manifestou.
Nunca a deficiência foi argumento para que eu não pagasse Imposto de Renda ou tarifas bancárias, mas, quando necessito de um suporte financeiro, como qualquer outro comedor de arroz com feijão deste país, tenho de comprovar que algo que me acometeu há quase 40 anos não me fere, hoje, o poder de ter “crédito na praça”.
Não sou de “chororô” e este espaço não é para contemplar demandas pessoais, mas afrontas desse tipo são plurais e corriqueiras no Brasil. Acontecem, com maior ou menor dimensão justamente por serem deixadas quietas, por serem sempre vencidas pelas dificuldades de entendimento e por não serem amparadas pelo bom senso, pela dignidade e pela cidadania.
Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO
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