Em uma sociedade que ainda luta para garantir direitos básicos às pessoas com deficiência, a pessoa surda costuma ser convidada a “participar pela metade”: está presente fisicamente, mas não compreende a maior parte do que é dito. Isso não é falta de interesse. É falta de acessibilidade.
Surdez não é desinteresse: é barreira de comunicação
Muitas vezes, quem ouve interpreta mal o comportamento da pessoa surda durante uma celebração:
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“Ela não presta atenção.”
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“Não se emociona.”
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“Não participa das orações.”
Na realidade, o que acontece é que, sem recursos de comunicação, a pessoa surda é colocada numa espécie de jejum forçado da Palavra – seja ela chamada de Evangelho, Escrituras, Doutrina, Mensagem ou Tradição.
Alguns pontos importantes:
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A comunidade surda tem uma língua própria, como a Libras no Brasil.
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A leitura labial é limitada, cansativa e nem sempre funciona.
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A comunicação escrita ajuda, mas não substitui a língua de sinais para quem tem essa língua como principal.
Quando um templo não se organiza para acolher essa realidade, a mensagem até pode ser bonita – mas não chega a todos.
Acessibilidade é cuidado espiritual e compromisso com direitos
No Cantinho dos Amigos Especiais, sempre lembramos: inclusão não é gesto de caridade, é questão de direitos. E, no ambiente religioso, esse direito se soma a algo ainda mais profundo: o direito de viver plenamente sua fé.
Ao tornar o espaço acessível para surdos, a comunidade religiosa:
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pratica o amor ao próximo, indo além do discurso;
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promove justiça e equidade, garantindo o mesmo acesso à mensagem espiritual;
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constrói uma comunhão verdadeira, na qual todos participam, e não apenas assistem.
Mais do que cumprir leis, isso é coerência: se Deus (ou o Sagrado, como cada tradição entende) ama a todos, a comunidade que fala em nome desse Amor precisa ser compreensível a todos.
Passos concretos para tornar o templo mais acessível
Nem toda comunidade tem muitos recursos, mas todas podem começar de algum ponto. Eis algumas possibilidades:
1. Intérprete de língua de sinais
Sempre que possível, contar com intérprete de Libras (ou da língua de sinais local) em:
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cultos, missas, sessões e celebrações;
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estudos, aulas, catequeses, cursos doutrinários;
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eventos especiais (casamentos, batismos, iniciações, cerimônias coletivas);
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encontros de jovens, crianças e famílias.
Quando ainda não há intérprete:
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incentivar pessoas da própria comunidade a estudarem Libras;
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buscar parcerias com associações de surdos e instituições especializadas;
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organizar escalas para que ninguém fique sobrecarregado.
2. Legendas, projeções e materiais visuais
Nem toda pessoa surda usa Libras como língua principal; algumas se comunicam melhor pela escrita. Por isso, valem muito:
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legendas em vídeos exibidos nos encontros ou publicados nas redes sociais;
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projeção das letras de cânticos, preces e textos em telões ou monitores;
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resumos escritos das mensagens, disponíveis em material impresso ou digital;
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uso de slides, imagens e esquemas que acompanhem a fala.
Isso ajuda não só surdos, mas também idosos, pessoas com deficiência intelectual, TDAH, dislexia e quem tem mais facilidade com recursos visuais.
3. Sinalização e avisos acessíveis
A pessoa surda não enfrenta barreiras apenas na parte “espiritual” do encontro. As dificuldades aparecem também nas questões práticas:
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falta de sinalização clara de espaços (banheiros, secretaria, salas);
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avisos importantes feitos somente “no microfone”;
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mudanças de horário e recados divulgados apenas de forma oral.
Soluções simples:
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placas e cartazes bem visíveis;
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avisos importantes impressos, em grupos de mensagens ou quadros informativos;
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painéis ou telas com orientações em eventos maiores.
4. Formação da comunidade
A acessibilidade não pode ficar “nas costas” só do intérprete ou da família da pessoa surda. A comunidade toda precisa se envolver:
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falar sobre deficiência, capacitismo e acessibilidade nas reuniões internas;
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estimular que todos aprendam ao menos alguns sinais básicos (bom dia, paz, obrigado, tudo bem?);
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orientar para que, ao conversar com pessoa surda, a gente olhe no rosto, fale devagar, use gestos e, se necessário, o celular para escrever;
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evitar infantilizar, gritar, falar como se fosse uma criança ou agir com pena.
A mensagem que precisa ser passada é simples:
a pessoa surda é parte da comunidade, não um “enfeite” sentado no banco.
5. Ouvir a própria comunidade surda
Nada sobre nós, sem nós. Esse lema do movimento das pessoas com deficiência vale aqui também.
Perguntar faz toda a diferença:
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O que ajuda mais? Intérprete? Material escrito? Sinais visuais?
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Em quais momentos do culto ou reunião a pessoa se sente mais excluída?
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Que mudanças simples já fariam enorme diferença?
Cada pessoa tem uma vivência. Ouvir quem está na pele da situação é o caminho mais respeitoso e eficiente.
Quando a inclusão melhora a experiência de todos
Uma descoberta bonita é que, quando o templo se torna mais acessível à comunidade surda, toda a comunicação melhora:
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mensagens ficam mais claras e organizadas;
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cânticos e orações ganham projeção de letras, ajudando quem não conhece de cor;
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recursos visuais facilitam a vida de crianças, idosos e pessoas com dificuldades de atenção.
Ao incluir a pessoa surda, a comunidade está, na verdade, cuidando melhor de todo mundo.
Um chamado a todas as crenças
O Cantinho dos Amigos Especiais fala com pessoas de várias tradições religiosas – e também com quem não segue religião específica, mas se preocupa com a dignidade humana. Em todos esses caminhos, há uma ideia em comum: ninguém deve ser descartado.
Acessibilidade para surdos nos templos religiosos é um desses pontos em que as crenças se encontram. Ela afirma, na prática:
Aqui, sua presença importa. Sua fé importa.
Seu direito de compreender também.
Talvez a pergunta que cada comunidade possa se fazer seja:
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O que já fazemos hoje para incluir pessoas surdas?
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Que pequenos passos podemos dar a partir de agora?
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Com quem podemos aprender para avançar mais?
Quando um templo decide se tornar realmente acessível, ele não está apenas “modernizando o culto”. Está confirmando, em gestos concretos, aquilo que muitos pregam em palavras: o Amor – com A maiúsculo – é para todos, inclusive para quem precisa que a fé também seja vista, não só ouvida.
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