Esta é uma história de nascimento cotidiano, que dezembro traz à tona. É a narrativa de um amor de salvação, incansável e maravilhoso, entre pais e filhos.
Maria Clara nasceu “uma menina de vidro”, como se surpreendiam os profissionais dab UTI Neonatal do Hospital Geral de Fortaleza (HGF). A ultrassonografia em 3D, tirada do terceiro para o quarto mês de gestação, já mostrava que Clarinha seria diferente. “(Os médicos) não estavam vendo as pernas, o bebê não estava se formando normal. E foi aí que começou a nossa luta”, refaz a dona de casa Ana Kelly Pereira de Abreu, 32.
O que o pré-natal dizia a Kelly e ao gari Felipe de Souza Pereira, 27, era que a terceira filha do casal não precisaria nascer. A sequência de ultrassons esboçava uma criança sem um rim, com o coração crescido e um pulmão atrofiado. “Ela poderia ter ossos de vidro e se quebrar”, subtrai Kelly. “Falaram que a situação dela era muito grave e que a Justiça daria o direito (ao aborto). Mas não achei justo, porque já tinha visto o coraçãozinho da minha filha bater”, equilibra a mãe.
E coração também tem voz e querer. Mãe e filha estabeleceram essa singular comunicação e, desde cedo, fizeram um acordo tácito. “Sentia ela mexer dentro de mim, todos os dias. E conversava com ela, dizia que se ela não desistisse, eu também não desistiria”, apoia-se Kelly. E cada uma cumpre sua parte, há exatos “um ano, quatro meses e 12 dias” (tempo assinalado por Kelly, no último dia 9, data da entrevista).
Os dias de vida
A contagem é dos dias de vida, mais do que dos momentos de incerteza. Desde que Clarinha abriu os olhos, Kelly e Felipe se mantém ao lado de um dos leitos da UTI Neonatal do HGF. Vêm, de ônibus e de van, da Lagoa Redonda. E ali elaboram um calendário paralelo ao do mundo que acorda Kelly, invariavelmente, às 4 e 40 da manhã pra “deixar tudo pronto em casa”.
Uma data especial foi quando Clarinha atravessou as cirurgias de traqueostomia (em síntese, para respirar), gastrectomia (para se nutrir) e correção de refluxo. Ou quando venceu as infecções. Ou quando ressurgiu das paradas respiratórias. Ou quando, 11 meses depois do nascimento, pode vestir a primeira roupinha de menina. Ou ainda quando inteirou um ano, com aniversário no hospital.
Clarinha era um talvez (talvez não nascesse, talvez não vivesse nem 24 horas) e se torna um dos milagres da crença na vida. De bebê prematuro extremo cresce história de amor – amor de mãe, pai e dos profissionais que cuidam dela.
E amor ignora tempo. Existe, independente. Até preveniram a Kelly que não fizesse o enxoval “porque o tempo dela pode ser horas”. Mas o amor de mãe - que é o mais crédulo do mundo - esperou Clarinha como esperou as primeiras filhas, “com tudo do mesmo jeito, o enxovalzinho completo”. O amor permanece, para sempre firme na vigília, imaginando o dia de Clarinha receber alta. “Sonho com ela em casa, brincando com as meninas, do jeitinho dela”, dialoga o pai.
E o amor ama o imperfeito. “Se você não consegue amar uma pessoa por ela não ser da maneira que você espera ou da beleza que você quer mostrar pra alguém, então, você não ama. Clarinha me pede muito pouco, quando olha pra mim. Pede só que eu a ame e cuide dela”, declara Kelly.
Mãe e filha, que já decifraram a linguagem do coração, descobrem juntas os sentimentos do olhar, as necessidades da alma. Houve momentos na UTI, lembra Kelly, que Clarinha “olhava pra mim como se dissesse: ‘Mãe, me ajuda’”. E uma vez que se sabe da salvação de que o amor é capaz, o medo vira uma narrativa de superação. Clarinha, que era dúvida, se torna “um Natal a cada dia”, uma vida inteira em instantes, uma canção na hora de dormir, um recomeço com o amanhecer.
Havia o receio de lhe darem banho ou mesmo de pegá-la no colo. Mas a “menina de vidro” nasceu para que não tivessem medo (também de se aproximar). A vida, na verdade, é um talvez que só saberemos se vivermos. Talvez Clarinha tenha nascido para iluminar uma fé, uma esperança. Ou talvez Clarinha contrarie o esperado para ser a paciência. E talvez Clarinha continue vivendo para dizer, com o seu olhar para o mundo, que amor também se aprende.
Por quê
ENTENDA A NOTÍCIA
Há duas coisas sem muita explicação na história de Maria Clara. A primeira é a má formação da filha de pais sem vícios e histórico familiar saudável. “Os médicos disseram que é má formação nos cromossomos”, repete Kelly. E a segunda: o incansável e incondicional amor de mãe e de pai. “Parece que a gente amou mais quando ela nasceu do que quando estava na gestação”, expressa Felipe.
Saiba mais
O quarto de Maria Clara, na casa dos pais, já está pronto, afirma Ana Kelly Pereira. Forrado, piso de cerâmica, sempre limpo. E, segundo a mãe, a menina também já está pronta para a alta médica. Só não deixou o hospital ainda porque depende de uma alimentação própria, fornecida pela Secretaria da Saúde do Estado (Sesa).
Segundo Ana Kelly, o leite Neocate é o único alimento possível para Maria Clara. Uma lata (400g) custa acima de R$ 200, e a mãe diz que a filha precisaria de 12 latas por mês e por tempo indeterminado.
Kelly afirma ter ido à Sesa para solicitar a alimentação da filha, mas o pedido teria sido negado porque excederia o número de latas doado pelo Programa do Leite, do Governo do Estado.
Ana Maria Freitas de Oliveira Forte, assistente social da UTI Neonatal do HGF, reforça que Maria Clara, paciente do HGF, já está no Programa do Leite. E observa que “ela toma só esse leite, então, a quantidade dobra. E precisaríamos garantir esse leite por tempo indeterminado”.
Na tarde da última sexta-feira (16), informou Ana Maria, a gastroenterologista do Hospital Infantil Albert Sabin (HIAS, coordenador do Programa do Leite) visitaria Maria Clara para dar novo parecer sobre o caso . Com a estimativa da especialista, completa a assistente social, a família poderia recorrer à Promotoria da Saúde.
Antes do fechamento desta edição, a assessoria de imprensa da Sesa garantiu ao O POVO que a quantidade de leite necessária, de acordo com a determinação da médica do HIAS, seria disponibilizada. Para isso, a família deve ir à Sesa com a prescrição da especialista do HIAS. A liberação é rápida, comprometeu-se a assessoria.
(Fonte: Jornal O POVO - 20/12/2011)
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