quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

Autismo e água: entre o encanto, o cuidado e as possibilidades de inclusão

É muito comum ouvir famílias dizerem que a criança ou o adulto autista “ama água”: fica hipnotizado olhando o mar, quer entrar na piscina o tempo todo, adora banho demorado ou brincar com mangueira e bacias. Ao mesmo tempo, também ouvimos relatos de medo, insegurança e histórias tristes de afogamento.

Falar sobre a relação entre autismo e água é, portanto, falar de encantamento, de risco e também de oportunidade terapêutica e inclusiva.


Por que a água encanta tantas pessoas autistas?

Muitos autistas têm um modo diferente de processar os estímulos sensoriais: sons, luzes, cheiros, toques e movimentos podem ser sentidos de forma mais intensa ou mais suave do que na maioria das pessoas. A água, por sua vez, é um “pacote completo” de sensações:

  • o barulho das ondas ou dos respingos,

  • o brilho da luz refletida,

  • a sensação de pressão e de frescor no corpo,

  • o movimento contínuo e previsível das ondas ou da água correndo.

Por isso, alguns estudos e relatos apontam que a água pode ser um estímulo sensorial muito atraente para muitas pessoas autistas, trazendo sensação de calma, prazer e organização interna.

Não é uma regra para todo mundo — há autistas que não gostam de água, têm medo de banho ou se incomodam com respingos. Mas, quando há atração, ela costuma ser intensa: é o menino que corre em direção à piscina, a menina que fica fascinada olhando a água do lago, o jovem que prefere ficar horas no banho, pois é ali que se sente melhor.


Quando o encanto vira risco: o problema do afogamento

Exatamente porque a água é tão atraente, o risco de afogamento é muito maior entre pessoas autistas, especialmente crianças.
Levantamentos de entidades especializadas mostram que crianças com Transtorno do Espectro Autista têm um risco de morte por afogamento muito mais elevado do que crianças não autistas, chegando a cerca de 160 vezes mais em alguns estudos.

Alguns fatores ajudam a entender esse dado tão preocupante:

  • Tendência à fuga / “elopement”: muitas crianças autistas podem sair correndo de casa, da escola ou de um ambiente fechado, movidas por curiosidade, busca de um estímulo (como água) ou tentativa de fugir de um desconforto.

  • Atração forte por água: se houver rio, represa, piscina ou lago por perto, é comum a criança se dirigir para lá.

  • Baixa percepção de perigo: algumas crianças e adultos não avaliam o risco da profundidade, da correnteza ou da ausência de colete e supervisão.

  • Dificuldades de comunicação: se estiverem em perigo, podem não gritar por ajuda, seja por dificuldade de fala, seja por não conseguirem organizar o pedido de socorro.

Dados recentes e relatos de entidades de prevenção de afogamento mostram que, entre as mortes de crianças autistas após episódios de fuga, o afogamento é a principal causa. Isso tem levado associações de autismo a criarem alertas específicos sobre o tema e campanhas focadas em prevenção.


A água como aliada: brincadeiras, natação e terapias aquáticas

Se, por um lado, existe o risco, por outro a água também pode ser uma grande aliada na qualidade de vida de pessoas autistas, desde que haja segurança e orientação adequada.

Pesquisas sobre terapia aquática / hidroterapia em crianças com TEA apontam benefícios como:

  • melhora da coordenação motora e do equilíbrio;

  • aumento da força muscular e da resistência física;

  • redução de comportamentos de agitação e ansiedade;

  • aumento da interação social (brincar com outras crianças, seguir instruções de um professor, participar de jogos em grupo);

  • melhora da auto-regulação sensorial – a pressão da água, a flutuação e a temperatura estável podem trazer uma sensação de “abraço” no corpo, ajudando a pessoa a se organizar internamente.

Além das terapias formais, brincadeiras simples com água – bacias, esguicho de mangueira, chuveirão, chuva artificial no quintal – podem ser utilizadas como recurso de lazer, vínculo e comunicação em família, quando a pessoa autista gosta desse tipo de estímulo.

O ponto-chave é: usar a água como aliada, sem esquecer a segurança.


Cuidar é prevenir: orientações práticas para famílias e comunidades

1. Segurança começa em casa

  • Se houver piscina em casa, condomínio ou sítio da família, é fundamental ter grade, portão com trava alta e, se possível, capa de proteção apropriada.

  • Portas e portões que dão acesso à rua, a rios ou represas podem ter fechos extra, de preferência fora do alcance da criança.

  • Alarmes de porta, campainhas que tocam ao abrir e outros recursos simples podem ajudar a avisar quando alguém sai sem que o cuidador perceba.

2. Ensinar a nadar o quanto antes – com abordagem inclusiva

  • Aulas de natação adaptadas para autistas podem salvar vidas: a criança pode aprender a boiar, virar de barriga para cima, nadar até a borda e segurar firme, mesmo que não domine todos os estilos.

  • É importante procurar profissionais que conheçam o TEA ou estejam abertos a aprender, usando rotinas visuais, repetições previsíveis e reforço positivo.

  • Mesmo com aulas, a supervisão de um adulto responsável continua obrigatória. Saber nadar reduz o risco, mas não elimina.

3. Supervisão constante perto de qualquer água

  • Crianças autistas nunca devem ficar sozinhas perto de piscinas, lagos, rios, praias ou até tanques e caixas d’água.

  • Em festas de família, clubes, viagens e passeios, o ideal é combinar quem será o adulto de referência, com atenção exclusiva a essa criança naquele período.

  • Em ambientes com muita gente, usar identificação (pulseira, cordão) com contato da família pode ajudar em caso de fuga.

4. Comunidade preparada salva vidas

  • Escolas, clubes, igrejas, centros comunitários e espaços públicos podem oferecer orientação específica sobre autismo e segurança na água aos seus funcionários.

  • Salva-vidas e monitores precisam saber que muitas crianças autistas são atraídas pela água, podem não responder quando chamados e podem se afogar silenciosamente, sem gritos.

  • Políticas públicas que incentivem programas de natação inclusiva, cercamento de áreas de risco e campanhas de conscientização contribuem diretamente para reduzir mortes por afogamento em pessoas autistas.


Respeito ao jeito de ser e direito ao lazer

É importante lembrar que o objetivo não é afastar a pessoa autista da água, mas permitir que ela se relacione com esse elemento de forma segura, respeitosa e prazerosa.

  • Se a pessoa ama água, vamos cuidar para que tenha acesso a piscinas, praias, rios, chuveirões e brincadeiras com segurança, supervisão e, quando possível, apoio profissional.

  • Se a pessoa tem medo ou aversão, vamos respeitar esse limite, oferecendo aproximação gradual, sem forçar, e lembrando que nem todo mundo precisa gostar da mesma coisa.

No fim das contas, a relação entre autismo e água nos lembra que inclusão também é garantir acesso seguro ao lazer.
É reconhecer que aquele menino fascinado pela piscina, aquela jovem que só relaxa verdadeiramente no banho, aquele adulto que encontra paz olhando o mar não estão “exagerando”: estão expressando um jeito próprio de sentir o mundo.

Quando famílias, profissionais e sociedade entendem essa relação, conseguem transformar a água de possível ameaça em espaço de cuidado, desenvolvimento e alegria — como deve ser em qualquer caminho verdadeiramente inclusivo.


Referências

Nenhum comentário: