sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Médico cego de SP mantém consultório, atende em hospital e orienta alunos


Endocrinologista perdeu totalmente a visão há oito anos e é especialista em tireoide

4.out.2018 às 12h00

SÃO PAULO - A rotina do médico endocrinologista Ricardo Ayello Guerra, 47, é pesada como a de qualquer outro profissional de saúde. Ele atende em uma clínica particular e também dá expediente em dois grandes hospitais públicos de São Paulo, onde ainda orienta o trabalho de dezenas de colegas residentes. A diferença é que o doutor Ricardo não tem a visão, é totalmente cego.

Não há segredo nem assistencialismo para o sucesso profissional dele. Sua jornada foi marcada pela construção de um amplo conhecimento técnico e teórico, por adaptações básicas em sua rotina e pela permanente preocupação em prestar um bom serviço ao paciente.

O endocrinologista Ricardo Ayello Guerra, que trabalha sem ajuda da visão - Marlene Bergamo/Folhapress
Ricardo se formou em medicina pela Uerj (Universidade do Estado do Rio do Janeiro), uma das melhores do país, especializou-se em tireoide, cujos problemas são muitas vezes detectados pelo toque do médico. Para rotinas diárias, ele tem sempre ao seu lado um profissional de confiança que lê os resultados de exames e resolve questões práticas.


“Durante o período de faculdade, eu ainda tinha um pouco de visão [ele nasceu com retinose pigmentar] e enfrentava mais dificuldades em locais com pouca luz ou para usar instrumentos como o microscópio, pegar uma agulha. Tentava compensar estudando muito, até seis horas por dia”, afirma o médico.

Embora tenha sempre se deparado com questionamentos sobre sua competência e habilidade, de ter sofrido resistência e algum bullying de seus colegas, Ricardo, com apoio familiar e gosto pela prática médica, convenceu-se de que poderia seguir em frente na carreira.

“Ninguém conseguia me dar uma justificativa convincente para fazer eu desistir de ser médico. Passei num vestibular muito difícil, mas até estava disposto a abrir mão se houvesse algo que me impedisse de continuar. Conversei com vários catedráticos que me falaram que eu tinha, sim, condições de exercer a profissão com adaptações, estudos, com muito aprendizado.”

Em disciplinas muito práticas como pronto-socorro ou cirurgia, cumpriu toda a parte teórica, fez provas e foi aprovado. Em histologia —que estuda composição e função dos tecidos vivos— tomou bomba, pois o professor exigia que ele usasse o microscópio.

“Minha sorte foi que esse professor mais tradicionalista se aposentou e o novo que entrou no lugar dele aceitou e achou natural a forma que eu propus para realizar as avaliações, por meio de fotografias 3D. Não me lembro ao certo se fiquei com 9 ou 10.”

A psiquiatria foi uma das primeiras especialidades sugeridas a Ricardo, que já tinha convicção que poderia ser um bom médico de atendimento clínico, trabalhando em consultório. Escolheu a endocrinologia. Fez residência médica no Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo, onde, em 2002, prestou concurso para médico endocrinologista e passou em primeiro lugar.

Ele também é concursado no HSPM (Hospital do Servidor Público Municipal de São Paulo), onde ficou em segundo lugar nas provas. Fez mestrado na Universidade Federal de São Paulo com um trabalho já voltado aos estudos da tireoide.

Há 15 anos, a doença do médico começou a progredir e ele passou a perder gradativamente a capacidade de enxergar. Há oito anos ele é considerado totalmente cego. Ricardo ainda faz reabilitação na Fundação Dorina Nowill para lidar melhor com sua situação de forma independente.

Para a médica Daniela Yone Veiga Iguchi Perez, colega de Ricardo no HSPM, ele é “um médico extremamente competente, referência em conhecimento nas áreas em que atua. Um grande exemplo para os residentes e toda a equipe. Sua deficiência visual, que passa totalmente desapercebida no trabalho que desenvolve na assistência e no ensino, apenas aumenta a admiração que todos temos por ele”.

Duas vezes por semana, o endocrinologista atende em um consultório particular em Atibaia (a 66Km de São Paulo), onde também moram seus dois filhos Leonardo, 12, e Camila, 10. Ele é separado por duas vezes e planeja se casar pela terceira vez em novembro.

“Uma regra de quando saio na rua com meus filhos é a de eles manterem sempre as mãos atadas comigo. Eles ainda perguntam se vou voltar a enxergar e eu digo que não, o que não é fácil, afirma Ricardo.

“Por muito tempo achei que surgiria um tratamento milagroso para o meu caso, hoje, não vivo com essa expectativa. Me preservo, me cuido, mas se surgir algo será lucro. A aceitação da minha condição é um exercício diário e vai durar a minha vida inteira. Não posso dizer que seja algo simples”.

No consultório, além de ter auxílio de programas de computadores específicos para pessoas com deficiência visual, o médico conta com um auxiliar. Suas consultas são longas para captar as nuances dos problemas de seus pacientes e ele não dispensa uma boa avaliação tocando seus pacientes.

“Não tenho como prática falar antecipadamente ao paciente sobre minha condição, pois entendo que isso não levará nenhum benefício a ele. A pessoa chega e é atendida da melhor maneira possível. Se ela pergunta sobre minha visão, explico. Nunca recebi nenhuma reclamação por isso e o meu termômetro é a volta dos pacientes ao consultório. De modo geral, elas voltam.”

Em seu trabalho nos hospitais públicos, o médico faz orientação e debate de casos a respeito de diabetes, obesidade, tireoide entre outros com os residentes.

“O doutor Ricardo é um homem admirável, com conhecimento geral e médico extenso e atualizado. Bastante querido por todos os colegas e pacientes. Nos inspira diariamente, ao demonstrar que sua deficiência não significa, de maneira alguma, uma limitação”, afirma Adriano Radin, residente de endocrinologia do HSPM.

Ricardo, porém, não avalia que tudo seja simples e entende que há, sim, dificuldades para a atuação de pessoas com deficiência em algumas áreas e que é necessário haver coerência.

“Não é possível determinar de antemão o que uma pessoa é capaz de fazer ou não. É preciso dar chances às pessoas, ouvi-las, entendê-las e agir sem preconceito, abrindo os espaços. Nem todo mundo terá características que atendam determinada profissional, mas isso vale para qualquer pessoa.”

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