quarta-feira, 23 de março de 2016

“Prendam aquele miserável sem dedo”


Nada como o conflito, a raiva e os embates mais calorosos para tirar das sombras pensamentos que explicitam o quanto uma diferença física ou sensorial tem poder de incomodar parte das pessoas. Quando os argumentos falham ou não são suficientes para satisfazer a revolta a contento, são os incontestáveis “defeitos de fábrica” os alvos de insultos.
Que o ex-presidente Lula gere razões suficientes para deixar o povo igual a um marimbondão preto, como diria minha tia Filinha, é passível de ser entendido, mas explorar o fato de ele não ter um dedo na mão direita para desmoralizar seu caráter, para mim, é o mesmo que gritar que um cidadão negro é macaco, que um gay é promíscuo ou que a garota que usa shortinho é vagabunda.
Já escutei de tudo dessa história da falta do mindinho do ex-presidente. Certa vez, o relato foi que ele mesmo “mandou decepar” parte de si para poder aposentar-se por invalidez e viver à custa do erário. Nesta ideia está implícita a mentalidade de que pessoas com amputações são inválidas, incapazes de trabalhar, de defender o pão com auxílio de próteses, muletas ou até pedaços de pau simulando pernas ou braços.
As piadas em torno do defeito físico de Lula são antigas, mas retornam agora, em momentos de tensão política, repaginadas em memes de internet, em postagens nas redes sociais e em compartilhamentos de grupos de aplicativos. Devo ter recebido umas dez vezes uma imagem do líder petista, com a mão no rosto, um esboço de sorriso e a frase: “Prendam este miserável sem dedo”.
Até certo ponto, pode-se considerar natural ser visto socialmente por suas características, embora possa haver algum dorzinha íntima por esses retratos: o careca da padaria, o gordinho da malhação, a moça manca do balé, o taxista de olhos esbugalhados, o jornalista “mal-acabado”.
O problema é quando se avança de uma simples referência para localizar um indivíduo, de uma maneira piadista de ver o outro, para uma manifestação de ódio por aquilo que o diferencia da maioria das pessoas. Sejam quais forem as canalhices supostamente cometidas pelo vacilante novo ministro da Casa Civil, explorar de maneira pejorativa sua deficiência –em algum nível a condição é um fato –é praticar preconceito, travestido de pilhéria inocente.
Ter nove dedos não influencia de maneira determinante a personalidade de ninguém, assim como usar uma cadeira de rodas, ser surdo ou babar pelo canto da boca. Ser bandido, ser carola, ser justiceiro ou ser probo são aspectos do “serumano” construídos com elementos de vida diversos e que independem de condições corporais ou dos sentidos.
Uma vez que se tolera o xingamento e o ódio a Lula aliados a um mindinho ausente, de alguma maneira, respinga-se a agressividade a todos os cidadãos explicitamente honestos, trabalhadores e batalhadores que perderam partes do esqueleto para acidentes, doenças ou fatalidades.
Como todo brasileiro, torço para que seja trilhado o caminho da Justiça e para que o país seja palco futuro de dias verdes, amarelos e vermelhos de confetes jogados sobre glórias e conquistas, não de embates enfadonhos e agressivos. Mas, até lá, que sejam pelo menos guardadas as foices e bicos afiados que dilaceram honras e hombridades.






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