terça-feira, 19 de junho de 2012

E se eu não fosse... (Por Jairo Marques)

E se eu não fosse...

Projetar aquilo que a gente não é pode ajudar a valorizar, a dar carinho, àquilo que a gente de fato é.




É CERTO que toda pessoa que habita este mundo e que tenha a carcaça avariada como eu já pensou algumas vezes ao longo da existência em como seria a vida "se não fosse" a condição de paralisia, de cegueira, de surdez, de inabilidades gerais do esqueleto ou da cachola.

Essa reflexão se diferencia, a meu ver, daquela "e se eu não fosse" tradicional, usada pelos mortais comuns. Essa dá e passa logo porque, afinal, para ser milionário tem a loteria, para ser loira tem a água oxigenada, para ser magro tem o picote no estômago, para ser mais bonito tem o Pitanguy, para esvaziar o saco cheio tem o passeio no parque.

Mas, para voltar a bater perna livremente, para ouvir os gracejos da novela, para ver o raiar do sol, é preciso esperança em um tal ratinho que encheram de eletrodos no Japão, em outro que tomou chá de células-tronco na China e em diversos voluntários que tomam agulhadas da ciência ao redor do planeta.

Logo, o "e se eu não fosse" para esse povo é calcado em uma esperança de algo que ainda não existe. E vai tempo, e vai estudo, e vai teste para que surja algo que abra caminho para uma mudança de realidade. Tem também o lance do "milagre", da força da fé, mas isso é motivo de outra prosa.

De minha parte, "se eu não fosse" cadeirante, acho que seria mais leve tanto por não ter de tocar os dez quilos da minha charrete como por não ter de me programar exageradamente para conseguir atuar em sociedade.

É um tal de pensar se vou caber no banheiro da casa da sogra, se a mesa da reunião será muito alta e vou ficar escondido atrás dela, se vai haver rampa na entrada do pé-sujo onde vai acontecer o happy hour com os amigos, se as calçadas da cidade do futuro veraneio vão ser boazinhas para meu ir, vir e tomar uma brisa.

Botar na roda o questionamento "e se eu não fosse assim", porém, não é de todo ruim. Projetar aquilo que a gente não é pode ajudar a valorizar, a dar carinho, àquilo que a gente de fato é.

Não enxergar muito bem pode ser compensado com mais poder às papilas gustativas que vão decifrar fácil os segredos do bolo de cenoura daquela tia de Sorocaba. Usar aparelho no ouvido é ter prerrogativa "maraviwonderful" de se desligar do mundo na final do campeonato em que o vizinho grita desesperado pela janela.

Ter incapacidades sérias de interagir com outros seres viventes é oportunidade de examiná-los em detalhes, de ter uma perspectiva de escafandrista enquanto todos os outros se imaginam borboletas lindas e perfeitas que se esquecem de que foram lagartas, que se esquecem de suas efemeridades.

Ok. Admito que é gostoso e diverte a alma imaginar possibilidades, brincar de desenhar para o cotidiano da gente certas sensações inéditas e aparentemente inatingíveis. Sem falar que, no campo imaginativo, nas "viagens na maionese", nós podemos ser verdadeiramente iguais uns aos outros.

Porém, quando o galo canta e o homem se levanta, ele será exatamente aquilo que as circunstâncias da existência o fizeram, com a chance de moldar "apenas" seu caráter, sua maneira de interagir e de aproveitar as 24 horas do dia.

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